domingo, 15 de junho de 2008

Resenha sobre o livro: É isto um homem? (Primo Levi)


Primo Levi: um relato de alteridade
Pode ser que diante dos acontecimentos tão monstruosos, o comportamento mais lúcido e apropriado não seja a análise (especifiquemos) científica, que vise à formulação de princípios gerais ou à descoberta de verdades profundas, mas a simples notificação do ocorrido. Já que compreender uma ofensa tão excessiva e desmedida é impossível, narrá-la é preciso. Perpetuar-lhe, apenas, a memória em um relato que se limite rigorosamente ao quia.
(BARENGHI, 2005: p. 180)

Qual o valor que uma linguagem escrita pode adquirir à reconstrução histórica de um momento tão difícil de ser explicitado? Essa é uma pergunta coerente a se fazer em relação ao que Primo Levi nos fornece em sua obra É isto um homem?. O Holocausto é um dos poucos fatos históricos, cuja história pode ser reconstituída mediante a presença de “fontes históricas” singulares: homens e mulheres ainda vivos. Isso significa que o historiador, ao analisá-las, deva seguir um parâmetro de estudo de certo modo mais rígido, no sentido de como deva interpretá-las, buscando discernir até onde vai a veracidade dos fatos relatados. Sem dúvida, esta parece ser uma tarefa não tão simples de ser realizada, mas constitui algo fundamental para se compreender este momento da história de modo imparcial. Entretanto, vale refletir-se o quê significa ser imparcial diante disso e quais são os limites desta imparcialidade, na medida em que o historiador estará lidando com situações em que dor, sofrimento (dimensões, em certa medida, individuais), fizeram parte de uma realidade visivelmente concreta. Diante de situações singulares quanto as que Levi vivenciou, as formas de se expressar a realidade se misturam, incondicionalmente, às sensações e sentimentos oriundos das vias de interpretação pessoal que se abrem. Esse tipo linguagem adquire, nesse sentido, um valor interpretativo pessoal que deve ser enxergado mediante as razões que o produziram, enquanto produto de condições supressivas e degradantes. Condições que, no caso de Levi, foram responsáveis pela supressão de sua própria qualidade humana, originando um relato de alteridade; isto é, não é “o” Primo Levi que é descrito no livro, mas um outro muito distante, que perdeu a sua verdadeira identidade pessoal, e quer, por isso, encontrá-la em meio a um ambiente desolador e chocante aos olhos de leitores sensíveis. Parece que o artifício mais plausível para Levi é reconhecer o fato de que havia perdido sua humanidade, tornando-se necessário relatar isso da maneira mais realista possível.

O que está em jogo (...) é a definição de uma identidade. No entanto, em vez da descoberta ou da conquista de uma identidade individual, agora se fala de uma identidade negada (...); ou, mais precisamente, da imposição feroz de uma não-identidade, que prenuncia o extermínio físico.
(BARENGHI, 2005: p. 177)

A autobiografia de Primo Levi contida em É isto um homem? traduz um momento de busca por identidade que lhe fora negada. Os quadros desumanizantes aos quais Levi fora submetido foram responsáveis por retirar-lhe a sua capacidade de reconhecer a si próprio como um ser humano. A sua autobiografia retrata, desse modo, não uma identidade individual, marcada pela exuberância dos seus mais sublimes atributos, mas sim o momento em que essas qualidades se tornaram ausentes, de forma impositiva, proclamando uma ocasião de degeneração físico-psicológica. As primorosas conclusões de Barenghi, a respeito, admitem que as mais estranhas e espantosas experiências vivenciadas por Levi nos campos de concentração se interpõem entre ele (narrador) e o leitor sob uma forma totalmente impiedosa e direta; quase como se essas experiências, que retratam a luta pela sobrevivência e a perda de uma identidade, nunca houvessem feito parte do “cotidiano” da comunidade humana – fosse estranho, alheio a uma “normalidade”.
Diante disso, vale perguntarmo-nos a respeito do valor que a palavra tem para o estudo realizado pelo historiador, e de que modo ela pode contribuir na reconstrução do Holocausto, enquanto momento histórico, no sentido de que será que ela é auto-suficiente? Ou melhor, a palavra consegue traduzir veridicamente e integralmente uma realidade vivenciada? A resposta é, evidentemente, não. Os relatos de Primo Levi, sem sombra de dúvida, correspondem a um referencial importante para os historiadores do período. Eles traduzem, na maioria das vezes, realidades convincentemente vivenciadas, assim como os seus conseqüentes reflexos na vida de Primo Levi. A disposição com que são introduzidos na narrativa garante uma expressividade significativa; nos fornecem dados importantes sobre diversos momentos em que Levi se vê como um verdadeiro “ser frágil”. A característica enfática da narrativa pode, então, ser constituída mediante o uso de detalhes, aspectos sutis, mas que traduzem com clareza as cenas descritas. Vale se pensar qual a relação existente entre a experiência da barbárie e a linguagem construída para representá-la, visto que aquele que a vivencia encontra-se em uma situação difícil de explicá-la. Diante de um quadro de horror experimentado, um indivíduo naturalmente apresenta alguma dificuldade de expressar com clareza, ou mesmo com poucos detalhes, aquilo que tanto lhe afetou, às vezes mais psicologicamente do que fisicamente. Isso se relaciona a situações em que estão presentes quadros de ações desumanizantes. No caso de Primo Levi, isso se torna quase ausente. Percebe-se nos seus relatos uma necessidade pujante de falar, de contar, passando o máximo possível de clareza, o que vivenciou. Associado a isso, vemos uma narrativa triste, em que se percebe a característica “carregada” da narrativa de Levi, demonstrando o seu total desprezo pela condição a qual havia sido submetido, mediante a presença de elementos retóricos que fornecem uma percepção deprimente ao leitor. Há uma ânsia significativa de querer expressar a realidade sem distorcê-la, apesar de as palavras às vezes não constituírem o meio mais eficiente.
De acordo com Valeria de Marco, no século XX duas literaturas de testemunho foram criadas, uma voltada aos acontecimentos europeus da época do nazismo, e outra centrada em situações de autoritarismo estatal mais voltada ao contexto da América. Primo Levi é o principal expoente da chamada literatura de testemunho da shoah (“Holocausto”), estando intrinsecamente ligado a uma tendência, dentro desse tipo de literatura de testemunho, onde a incapacidade de expressar o que foi vivido nos campos de concentração se torna inerente à “aniquilação do homem”; ao contrário de outra tendência que atribui à criação de poemas após esse tipo de vivência um ato bárbaro, pois diante da barbaridade torna-se moralmente inviável a construção de tais narrativas. Valeria de Marco interpreta isso como a evidência de uma tensão entre catástrofe e representação. A catástrofe, entendida como uma situação de aniquilamento, destruição, extinção de qualidades humanas, liga-se diretamente a uma impossibilidade de reconstrução, de representação de qualidades humanas, de uma civilização. Essa tensão entre catástrofe e representação contribui para a inexistência de racionalismo no trato da construção narrativa; isto é, os relatos podem existir, mas não da forma inteiramente condizente com a realidade vivenciada. Como diz suas palavras:

O aniquilamento do homem ecoou no aniquilamento da utopia humanista, corroendo o poder explicativo da razão e a crença no conhecimento como força de civilização.
(MARCO, 2004: p. 53)

Muitos historiadores compreendem o “fazer” da história como verídico a partir da utilização desse tipo de fonte histórica. Diante disso, vale se perguntar a respeito de que modo o uso desses relatos podem contribuir para uma história mais “verdadeira”; pois, em termos lógicos, contrário a isso, haverá uma história “não tão verdadeira”, e, de certo modo, “falsa”. Esta é constantemente identificada como a chamada história vista de cima, ou história dos vencedores. Creio que refletir sobre essa questão é algo importante, na medida em que os relatos de Primo Levi são constantemente identificados como uma base de pesquisa histórica realista, e por isso suficientemente “verdadeira”. Acredito também que o fato de se constituir uma história dos vencidos, identificando-a com um tipo de narrativa ideal para os historiadores (principalmente em se tratando de contextos temporalmente tão próximos da atualidade), apenas contribui para o mesmo erro que era atribuído àqueles que se utilizavam da história dos vencedores: o uso quase restrito de apenas um dos lados da realidade histórica. Imagino que a narrativa ideal para um historiador, enquanto se privilegia princípios de mínima imparcialidade e uma análise neutra (no sentido misto da palavra), deva ser concebida mediante a confrontação de realidades históricas distintas, fluindo, a partir disso, hipóteses capazes de serem sustentadas facilmente. Ou seja, imagino que uma história dos vencidos não deva ser o objeto almejado pelos historiadores, com o uso de fontes históricas como os relatos de Primo Levi, mas sim um tipo de história que comporte tanto os relatos de Primo Levi, como os de nazistas extremados. E assim tirar-se conclusões.
Esse talvez seja um método mais “ortodoxo”, e por isso, “mais científico”, mas será que é condizente submetê-lo a um tipo de fonte histórica como o livro de Levi? Ou simplesmente a outros relatos com uma forte carga de realismo? Imagino que é condizente em certa medida. O que já foi dito acima refere-se a uma perspectiva de tratamento por parte do historiador que, acho, seria coerente em um estudo aprofundado sobre um tema tão complexo quanto o Holocausto, e a literatura produzida a respeito. Por outro lado, creio também que em se tratando de um estudo focado em uma produção autobiográfica como a de Levi (que é o propósito dessa resenha), uma perspectiva puramente “científica” não seria totalmente condizente com tal obra. Uma vez que esse não é o propósito do livro, e isso não significa, de modo algum, ter de desprezá-lo. Como citamos no início desta resenha (uma passagem de Barenghi), o modo como Levi traz-nos os acontecimentos que ele vivenciou, condiz com uma narrativa que não possui, propriamente, moldes de uma construção mais formal. Primo Levi faz isso, não por uma questão deliberada, mais porque é inerente à construção da temática que quer nos apresentar: a composição realista de um momento quase inacreditável àqueles que não o presenciaram. Por isso, o modo de construção dos relatos de Levi está, a nosso ver, muito coerente com a natureza temática apresentada. Como diz Barenghi (na passagem introdutória), a “simples notificação do ocorrido” já é suficiente para a proposta de Levi, e por isso seria incoerente, ou pelo menos não tão realista, o uso de um tratamento mais formal ao modo de apresentar e dispor os dados da narrativa, por Levi. É isto um homem? constitui uma história real e realista, por isso, se utiliza não de uma linguagem formal (“acadêmica”), mas direta, objetiva; propõe apresentar de forma “crua” aos leitores a detestável realidade pela qual Levi dispõe de um anseio em tornar o leitor um indivíduo consciente dos fatos, comprometendo-os à hostilidade ao nazismo. O autor tem a necessidade de fixar a consciência do que ocorreu aos leitores, inserindo-os como testemunhas de um testemunho.

Considerações Finais

É isto um homem? constitui, além de um referencial importantíssimo aos estudos históricos, uma obra-prima da literatura do século XX. Apesar das limitações impostas pela comunicação escrita e pelas conseqüências psicológicas oriundas do que foi vivenciado nos campos de concentração, Primo Levi consegue traduzir de modo sutil sentimentos e uma realidade quase inacreditável aos nossos olhos. Ele traz-nos, por meio das palavras (bem dispostas na narrativa, aliás), sensações, desejos, sentimentos, que fazem com que nós, historiadores, enxerguemos de modo singular esse período da história humana, em que quase tornamo-nos impossibilitados de seguir parâmetros de análise rígidos. Ele é a prova concreta de que os seres humanos necessitam não apenas de alimentos para entenderem a si próprios como seres vivos, mas que têm anseio por algo mais profundo e inconsciente no pensamento humano: a necessidade de reconhecerem a si próprios como um ser essencialmente humano, isto é, dotado de humanidade. Pois, no momento em que isso é perdido, perde-se junto sua própria identidade.
Por fim, Mario Barenghi nos fornece reflexões tão sensatas sobre tal obra, que me impossibilita de não citá-las ao final desta resenha:

A experiência do Lager, isto é, a ruptura da continuidade da existência, o choque da supressão de qualquer limite entre humano e inumano — que é algo muito mais complexo do que a simples predominância de um termo em relação ao outro, ou do que a supressão de um dos dois —, contém uma contradição insolúvel. Em seu suplício, ela é inesquecível: pede e exige que seja recordada. Mas só se pode recordá-la como uma zona de irrealidade, como alguma coisa que escapa aos esquemas habituais de interpretação do mundo. Se de fato aquela experiência for assumida como plenamente real, não poderá ser verdadeiramente recordada como própria: ou porque impele o sujeito a alienar-se de si mesmo (tudo isso aconteceu, mas a uma pessoa diferente de mim), ou porque se impõe como realidade exclusiva, absoluta, que degrada ou cancela todas as outras, prejudicando a capacidade de distinguir entre o mundo concreto dos fenômenos e os fantasmas obsessivos da mente. Em suma, Erguer-se, “Wstawac”: se Auschwitz é real, nada pode ser real fora de Auschwitz.
(BARENGHI, 2005: pp. 189-190)

Bibliografia

BARENGHI, Mario. A Memória da Ofensa. Trad. Maurício Santana Dias. In: Novos Estudos 73, CEBRAP, novembro 2005, pp. 175-191.

LEVI, Primo. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988.

MARCO, Valeria de. A literatura de testemunho e a violência de Estado. In: Lua Nova. Revista de Cultura e Política, CEDEC, 2004, nº. 62, pp. 45-68.

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